Revista Veja, Semana de 20.12.2009.
"No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um varão chamado José, da casa de Davi; e o nome da virgem era Maria. Entrando onde ela estava, disse-lhe: ‘Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo!’. Ela ficou intrigada com essa palavra e pôs-se a pensar qual seria o significado da saudação. O Anjo, porém, acrescentou: ‘Não temas, Maria! Encontraste graça junto de Deus. Eis que conceberás no teu seio e darás à luz um filho, e tu o chamarás com o nome de Jesus. Ele será grande, será chamado o Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai; ele reinará na casa de Jacó para sempre, e o seu reinado não terá fim’. Maria, porém, disse ao Anjo: ‘Como é que vai ser isso, se eu não conheço homem algum?’. O Anjo lhe respondeu: ‘O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo vai te cobrir com a sua sombra; por isso o Santo que nascer será chamado Filho de Deus. Também Isabel, a tua parenta, concebeu um filho na velhice, e este é o sexto mês para aquela que chamavam de estéril. Para Deus, com efeito, nada é impossível’. Disse então Maria: ‘Eu sou a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra!’. E o Anjo a deixou."
Extraída do Evangelho de São Lucas, a passagem acima é uma das mais belas e conhecidas daquele que é, por sua vez, o livro mais lido e célebre de todos os tempos – a Bíblia. Nela, é narrada a Anunciação, episódio seminal do Novo Testamento, a continuação cristã do livro sagrado dos judeus. Lucas nasceu no primeiro século de nossa era, em Antióquia, onde hoje é a Síria, e nunca chegou a conhecer Jesus: foi discípulo de Paulo, o grande disseminador da palavra de Cristo no mundo não judaico. Mas seu Evangelho é considerado uma obra de envergadura imensurável – e não só porque, ao lado dos Evangelhos de Mateus, Marcos e João, ele compõe o coração do Novo Testamento. Várias sumidades da história têm esse médico de origem grega na conta de um dos grandes de sua categoria – um historiador nato, ciente dos detalhes, afeito à precisão e surpreendentemente atento à necessidade de averiguar fatos. A história da qual Lucas faz a crônica está carregada de aspectos místicos: a de como Jesus nasceu de uma virgem, pregou uma mensagem transformadora, realizou milagres que comprovavam estar Ele imbuído do poder de Deus, e então foi perseguido, torturado e crucificado, para no terceiro dia após sua morte ressuscitar e ascender aos céus. Nas mãos desse autor, entretanto, fato e fé se fundem de maneira tão completa que, mesmo para um leitor ateu ou agnóstico, se torna um desafio separá-los.
O trecho em que o anjo Gabriel anuncia a concepção e o nascimento de Cristo é exemplar de seu estilo. Lucas narra o diálogo entre um anjo enviado por Deus – assunto de fé, portanto – e uma jovem. Mas provê data, lugar e circunstâncias, afere outro evento familiar (a gravidez de Isabel) e relata uma discussão sobre a viabilidade biológica da concepção por uma virgem. Só nessa pequena passagem, tem-se uma síntese de uma questão que está no centro da Bíblia. Como, afinal, esse livro escrito no decorrer de mais de 1.000 anos deve ser lido? Como uma transcrição direta da palavra de Deus, segundo creem tantos? Como a palavra divina inserida em um contexto terreno, o da relação com seu Deus de uma cultura que ia atravessando mudanças geográficas, políticas e sociais? Como um livro histórico, tão somente? Ou, conforme querem outros, como uma ferramenta que grupos diversos podem manejar na busca por poder e supremacia? Seria possível imaginar que, passadas tantas dezenas de séculos do advento desse livro, tais questões não mais teriam lugar no mundo moderno. Sucede exatamente o contrário. A religião nunca deixou de ser força motriz dos rumos da história do homem, tampouco fonte de tensão. E, na última década em especial, ela ressurgiu com efeito redobrado no centro do cenário político global. De onde ler a Bíblia – e entender como ler a Bíblia – não é nem de longe um conhecimento periférico na vida do século XXI.Um nova-iorquino de origem judia, mas nascido em uma família sem nenhuma inclinação religiosa, deu uma contribuição interessante ao debate. Em 2005, o escritor e jornalista A.J. Jacobs decidiu que viveria o ano seguinte fazendo tal e qual a Bíblia manda – tanto o Velho como o Novo Testamentos. Jacobs, que já fizera fama como o autor de The Know-It-All, sobre os doze meses que passara lendo a Encyclopaedia Britannica de ponta a ponta, colecionou experiências estranhas em quantidade suficiente para escrever outro livro, The Year of Living Biblically (O Ano de Viver Biblicamente), lançado em 2007: suou frio para apedrejar um adúltero, como ordena o Velho Testamento, cultivou uma barba que teimava em guardar vestígios de suas últimas refeições e, uma vez que deixou de contar até mesmo aquelas mentirinhas sociais que tanto ajudam a civilização, passou por malcriado em mais de uma ocasião (veja entrevista na página 158). O livro, claro, é parte troça e golpe publicitário. Mas é também um curioso experimento de, digamos, teologia aplicada: é possível viver, nos dias de hoje, como se viveu 3 200 anos atrás, o período em que se estima que a Bíblia começou a ser escrita?
Reportagem continua. Leia mais em www.veja.com.br.
Nota: Como ocorre quase que anualmente, as grandes revistas semanais costumam dedicar a edição de dezembro para assuntos de religião. Ora, é sobre a vida de Jesus, ora é sobre a Bíblia. Geralmente, a análise, no caso de Jesus, procura mostrar o lado histórico e praticamente ignorar o que a Bíblia revela acerta Dele. Já no caso dessa edição da revista Veja, a reportagem tem bons aspectos, pois evidencia a importância de as pessoas conhecerem a Bíblia. Nas entrelinhas, no entanto, é perceptível o interesse em se combater o que chamam de visão literal da interpretação da Bíblia. Ou seja, na opinião de quem edita e produz a reportagem, não é possível admitir certos conceitos bíblicos porque estariam ultrapassados, descontextualizados, etc, citando, por exemplo, a proibição da ingestão de carne de porco e animais marinhos como camarões, etc. Na minha visão, não é uma questão de literalidade, é questão de fidelidade aos princípios ali assinalados.
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