Por Felipe Lemos.
Talvez um dia eu consiga assimilar algumas das características de Amair de Jesus. Uma delas é a capacidade de viver uma vida longe dos dilemas e dramas urbanos de maneira simples. Indiferente aos conflitos na Líbia, aos ronaldinhos, aos terremotos, às discussões financeiras, às ameaças de guerra no planeta, Amair só nutre uma sincera preocupação: avisar a população de que a lancha de auxílio médico adventista está para chegar à comunidade. Pudera, diria o espertalhão de plantão, já que Amair vive em uma localidade ribeirinha às margens do rio Manacapuru, na Amazônia. Mas não é apenas isso. O sorriso franco de quem não se importa em vestir calção e calçar surrados chinelos todos os dias mostra que a vida pode ser dura em muitos sentidos, mas vai além do que eu compreendo a capacidade de digerir os ditames do cotidiano. É um exercício diário.
Como observador fora da comunidade, ainda me coloco alheio à realidade. Tenho dificuldade de entender vida como uma rotina de passar o dia inteiro em atividades agrícolas sem energia elétrica em casa, olhando a natureza e convivendo no sentido pleno de comunidade. Claro que lá há dilemas, dramas, vicissitudes, erros, pecados. Mas eles parecem mais poéticos, menos estressantes, menos traumáticos, mais possíveis de serem enfrentados com esperança. O calor extenuante durante o dia não desanima o solícito Amair. É interessante vê-lo conduzindo a voadeira pelo riozão, quase mar, encontrando caminhos onde a mente urbanóide e bitolada não consegue sequer enxergar um palmo diante do nariz. Desce rápido quando atraca às margens de uma comunidade, sai correndo em busca de algum mantimento e avisa os vizinhos de que logo a lancha estará por ali, dentro de alguns dias, algumas horas, não importa.
Gratificante é constatar que o simples homem do rio não chegou a estudar as ciências dos doutos. Mas tem capacidade de liderar seu grupo, criar meios de tornar boa a convivência na “ilha” afastada centenas de quilômetros da dita civilização de cimento e pedra. Confia na solidariedade dos lancheiros, que levam saúde e prevenção ao povo que nem sabe muito bem se está doente ou se doença tem cura, tem tratamento. Acredita nas pessoas ainda. Sorri quando olha para alguém que se amedronta com o banzeiro no rio.
Eu ainda quero pensar um pouco mais como o Amair; que a perspectiva da vida não está no solo duro do asfalto e nem na tecnologia que me faz escravo diário. Que os hábitos simples na terra da noite silenciosa podem me ensinar muita coisa que não aprendi ainda. Que as amizades desenvolvidas em torno da cooperação mútua ainda existem. E que consolidam uma saudável comunidade. Como eu disse: não me iludo, há problemas no simples e no complexo, mas a singeleza do assovio para chamar o companheiro e alertá-lo em alto rio é um aprendizado marcante.