Por Miriam Leitão - negrito acrescentado
Natal secreto
Os americanos não desejam mais Feliz Natal. Não pela crise e pelas profecias terminais dos economistas. Vem de algum tempo essa moda. Eles trocaram o específico Merry Christmas pelo genérico Happy Holidays. A idéia, disse um nova-iorquino, é que “Feliz Natal” seria uma agressão a quem não é cristão. Nas lojas, nas propagandas e entre as pessoas, o Feliz Natal está em baixa.
Gosto do que o politicamente correto tem de melhor: o respeito ao outro e a submissão das maiorias aos direitos, sentimentos e perspectivas das minorias. Mas daí a pôr o Natal na clandestinidade já é puro exagero nascido em Nova York. A cidade acredita não ser mais de maioria cristã. Hoje, os cristãos seriam, me explicou o nova-iorquino, “majoritariamente minoritários”. Nova York tem grandes comunidades judaicas, muçulmanas, budistas, religiões tão diversas quanto é diversa a sua população, formada por ondas de migrantes, que vão, em segunda e terceira geração, virando americanos.
Nas propagandas da televisão e dos jornais, ao fim de cada compra, na despedida de um encontro, o correto agora é desejar que a pessoa tenha “Feriados felizes”. Confesso que sou do tempo de que sem um caloroso Feliz Natal o Natal não era o mesmo. Feriados podem ocorrer em qualquer época do ano; este é especial. A propaganda tenta recriar aquele clima de amor ao próximo, carinho entre as pessoas, que sempre esteve ligado ao espírito natalino, mas fica esquisito quando, ao fim do anúncio, as pessoas se desejam apenas uma boa temporada de feriados. Pode-se dizer que ele seria o equivalente ao nosso simpático “Boas Festas”. Só é se não for uma forma de contornar a palavra Natal.
No domingo, dia 21, véspera da festa judaica das luzes, o “New York Times” trazia explícitos anúncios de “Happy Chanukah” das lojas Sacks, Bloomingdale’s, Macy’s e Brooks Brothers. Várias. Não se tem notícia de que algum não judeu tenha se ofendido com o desejo de que todos passem bem no dia que, para os judeus, é a lembrança da luta eterna contra o arbítrio, das luzes da fé que não se apagam, da força da reconstrução. Por que os cristãos deveriam esconder o Natal, tempo de amar o próximo, de ver o outro e suas aflições, de distribuir carinhos entre as pessoas, como se isso fosse ofensivo?
Um dos maiores avanços da civilização ocidental foi a separação entre Igreja e Estado. O trabalho ainda está inconcluso, tanto que o Brasil teve batalhas judiciais, este ano, para liberar as pesquisas científicas com células-tronco embrionárias ou interromper a gravidez de fetos sem cérebro, porque os religiosos eram contrários. Idéias como o ensino do criacionismo em escolas rondam os países. Esquisitices como imprimir profissões de fé nas cédulas de dinheiro persistem.
Os Estados precisam ser laicos, mas é um exagero, quase cômico, esconder a palavra Natal para provar tolerância às diferenças religiosas. Um pastor presbiteriano me contou que era capelão numa cidade do interior dos Estados Unidos quando, um dia, terminou uma oração pública falando “em nome de Jesus”. Foi perguntado pela imprensa — que o criticou fortemente — por que dissera aquilo. “Eu respondi: ora, porque eu sou um cristão.”
O nova-iorquino com quem conversei sobre esse fenômeno é católico. Disse que sempre fala “Happy Holidays” para não ferir suscetibilidades de algum grupo religioso a que, por acaso, pertença o seu interlocutor. Contou, ainda, que outro dia, ao fim de uma conversa, ele deu seu comportado “Happy Holidays” e ouviu do interlocutor um Feliz Natal. “Foi um alívio”, confessou. E os dois se confraternizaram.
O que há de bonito nos novos tempos não é esconder a própria convicção, mas respeitar a do outro. Quando deu seu apoio a Barack Obama, o general Colin Powell disse, na entrevista em que revelou seu apoio, que Obama tinha sido acusado de muçulmano. “Ele é cristão, mas a pergunta é: e se ele fosse muçulmano? Uma criança americana de 7 anos não pode sonhar em ser presidente dos Estados Unidos?” Ele disse isso para contar a história de um jovem soldado americano, muçulmano, morto no Iraque. Na formatura deste ano da Universidade de Miami, este pedaço da entrevista foi lembrado no discurso da professora Judith Rodin. Ela contou que a entrevista foi ouvida por um professor muçulmano, amigo dela, com seu filho de sete anos ao lado. No dia seguinte, o menino decidiu se candidatar a presidente da sua classe. Ganhou a eleição.
Judith Rodin, uma cientista de impressionante currículo acadêmico, ex-presidente da Fundação Rockefeller e ex-integrante do Conselho de Ciência e Tecnologia do governo Clinton, exortou os estudantes, com essa história, a aceitar a diversidade do século XXI. Nos rostos, nos nomes e nas cores dos formandos era possível constatar como essa sociedade é hoje incrivelmente diversa.
A diversidade é ninguém abrir mão da própria identidade. Refletir antes de falar para não ofender o outro, não impor o pensamento dominante como único padrão possível, incentivar os valores da convivência entre desiguais, tudo isso é bom, universalmente bom. E é dessa aceitação do outro, da união de todos, que se faz o verdadeiro espírito do Natal. Feliz Natal!
Nota: Eu concordo com Miriam Leitão no que diz respeito à necessidade de respeito mútuo por parte da crença de cada pessoa. Ou seja, se eu sou cristão posso demonstrar minha fé e isso é efetivamente o que se chama de liberdade religiosa. Mas discordo dela, obviamente, quando dá a entender que o ensino criacionista, por exemplo, é uma ameaça à divisão entre Igreja e Estado. O ensino criacionista faz parte do processo de liberdade religiosa, pois possibilita que os estudantes aprendam, também, uma abordagem diferente da que habitualmente se convencionou como a única digna de aceitação cientificamente e ideologicamente.