Coluna de Bernardo Esteves, Revista Piauí.

Naquela ocasião, a PLoS Medicine qualificou num editorial o episódio como “uma das mais convincentes exposições já vistas de manipulação e abuso sistemáticos da publicação acadêmica pela indústria farmacêutica e por seus parceiros comerciais”.
Dois anos depois, a revista revisitou o caso em três artigos e um editorial. Um texto assinado por Simon Stern e Trudo Lemmens defende que os autores que emprestam seu nome e credibilidade a artigos escritos na verdade por representantes da indústria farmacêutica sejam legalmente punidos, com sanções que não se restrinjam ao universo acadêmico. Um outro artigo, escrito por Alastair Matheson, destrincha as diretrizes do Comitê Internacional de Editores de Periódicos Médicos para a definição do que constitui a autoria de um trabalho científico e mostra como elas legitimam a prática da autoria fantasma em proveito dos interesses comerciais das grandes companhias.
A peça mais interessante do pacote, no entanto, é um relato pessoal de uma bióloga que, por 11 anos, trabalhou como ghostwriter da indústria farmacêutica. Em texto escrito na primeira pessoa, Linda Logdberg, vinculada ao Centro de Ciências Fernbank, em Atlanta (EUA), conta que escreveu, para uma companhia cujo nome ela mantém em sigilo, artigos acadêmicos, mas também uma série de outros documentos – apresentações de slides, monografias, planos de publicação etc.
No início, Logdberg não fazia questionamentos éticos sobre seu trabalho – “por muitos anos considerei meu papel similar àquele de um técnico bem pago”, escreveu. Ao discutir suas motivações, a bióloga contou que começou a fazer esse trabalho por ter perdido o gosto pela carreira acadêmica. A flexibilidade de trabalhar em casa e a possibilidade de interagir com pesquisadores de alto nível também foram fatores importantes, mas talvez não o mais fundamental deles. “O pagamento era bom”, escreveu a bióloga. “Realmente bom, especialmente se comparado com o salário típico de uma professora assistente.”
Com o tempo, o trabalho começou a perder o charme e a bióloga passou a se ver às voltas com conflitos éticos consigo mesma – como no caso de um anticoncepcional que causava sangramento vaginal grave e imprevisível em algumas mulheres. “Meu trabalho era redigir o rascunho de uma monografia que delinearia os benefícios do produto, um dos quais, segundo o cliente, seria o fato de a mulher poder ao menos antecipar o sangramento, embora ele pudesse ser grave.”
A gota d’água veio na revisão de um artigo sobre uma droga contra o déficit de atenção com hiperatividade – um distúrbio que acomete dois dos filhos da bióloga. Na impossibilidade de discutir um ponto questionável do artigo que estava revisando, ela decidiu abandonar a carreira de ghostwriter e decidiu entrar em contato com o New York Times para denunciar o caso. Ela conta ter sido ameaçada de retaliação legal por violação de uma cláusula de confidencialidade.
A iniciativa de Logdberg é louvável, mas localizada. Em editorial sobre o tema publicado em agosto, a PLoS Medicine admite que há novas perspectivas sobre o problema, mas poucas soluções em vista. Um primeiro passo, como sugere o texto, talvez seja encarar o problema de frente: “Todos envolvidos na indústria da publicação médica, incluindo periódicos, instituições e as agências reguladoras de pesquisa precisam tomar ações específicas para erradicar as práticas corruptas de autoria aparentemente endêmicas que ainda existem na literatura médica – eles podem começar admitindo a extensão do problema.”
Original em http://revistapiaui.estadao.com.br/blogs/questoes-da-ciencia/geral/fantasma-arrependido
Nota: Não é de hoje que as indústrias farmacêuticas estão envoltas em suspeitas de colocar a questão comercial totalmente acima da médica no que diz respeito à divulgação dos benefícios e e efeitos colaterais dos medicamentos. É evidente que a tecnologia médica está avançando e que isso tem contribuído para prolongar a vida e ajudar no combate a males que antes não ocorria. Mas essa reportagem serve como um importante alerta quanto à necessidade de encarar o uso de medicamentos como uma necessidade em casos clinicamente definidos. E não fazer dos remédios "amigos" constantes para toda e qualquer hora, principalmente sem prescrição de um profissional médico e como hábito de vida.
Bons hábitos mesmo devem vir da prática de exercícios, alimentação saudável, repouso, exercícios físicos, entre outras rotinas que ajudam a prevenir certos males e conferem disposição a mais para o cotidiano de trabalho e afazeres em geral. Não estou advogando aqui a eliminação de medicamentos até porque isso não é razoável, mas o olho precisa estar bem aberto para essa indústria que, cada vez, mostra-se mais indigna de confiança.
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