Segue abaixo primeira parte de entrevista exclusiva com o jornalista Fernando Evangelista, correspondente da revista Caros Amigos e de outras publicações internacionais. Fernando, que estudou jornalismo com o editor do blog REALIDADE EM FOCO, é um jovem simples, obstinado, revolucionário nas idéias e nas letras e que tem escrito histórias, como ele mesmo diz, "que não se contam". Natural de Florianópolis, vive atualmente na Ilha de Malta (Europa), é autor de vídeos e reportagens premiados no Brasil e no mundo. Em 2003, viu e registrou a Guerra do Iraque e, em agosto deste ano, foi ao Líbano e acompanhou o dia-a-dia de uma guerra insana e cruel. Reportagem completa feita por ele está no link da revista Caros Amigos (http://carosamigos.terra.com.br/) . Nesta primeira parte da entrevista, por e-mail, Fernando Evangelista fala sobre a questão religiosa relacionada aos conflitos.
RF - Sua vivência em áreas de conflito do Oriente Médio deixou, para você, a evidência de algum conflito religioso, puramente político-territorial, econômico ou uma mistura dos três aspectos?
Fernando - Quando comecei a pesquisar sobre o conflito entre palestinos e israelenses, por exemplo, tinha a convicção de que a base do problema era exclusivamente política. Com o tempo, através das reportagens que fiz, fui descobrindo o quanto é decisiva a questão religiosa. Uma das minhas maiores dúvidas sempre foi entender as raízes da ocupação ilegal da Cisjordânia por Israel desde 1967. Por que não se troca, como quer a maioria dos palestinos e a comunidade internacional, terra por paz? Por que Israel não se retira da Cisjordânia? Lá, descobri que, para a maioria dos colonos judeus, a Cisjordânia – que eles chamam de Judéia e Samaria – é a “verdadeira” terra de Israel. Tel Aviv, Gaza, Haifa e o resto não têm a mesma relevância. Para eles, o que importa é o que está à margem oeste do Rio Jordão. E por quê? Por causa dos sentimentos religiosos. Hebron, por exemplo, é onde estão enterrados Abraão, Jacó e Isaac e tudo isso tem um tremendo significado. Essa motivação religiosa gera um problema político, com conseqüências econômicas que estouram, como sempre, no lado mais fraco.
Fernando - Se levarmos em conta que uma das partes envolvidas é o Hezbollah, que significa Partido de Deus, a resposta parece ser positiva. Porém, como mostra o especial da revista Caros Amigos sobre o Oriente Médio, está cada vez mais evidente o fato de que o recente ataque ao Líbano foi planejado por Israel, muitos antes da captura dos soldados. A intenção da ofensiva, segundo essa análise, seria causar o maior dano possível ao Líbano, reavivando as rixas entre as várias religiões. Então, com um governo enfraquecido, uma sociedade dividida, Israel colocaria no poder um aliado, um testa-de-ferro. Esse aliado seria o contrapeso ao poder crescente do Irã na região. Isso - de mudar o governo - pode parecer absurdo, mas faz sentido porque a invasão de 1982, como agora já se sabe, não tinha como objetivo principal defender Israel da OLP (Organização para Libertação da Palestina), de Yasser Arafat. O principal motivo da invasão israelense era colocar no poder Bashir Gemayel, líder da milícia falangista maronita, considerado pelo então primeiro-ministro Menachem Begin e por Ariel Sharon, na época ministro da defesa, um aliado.
Fernando - Pela lógica israelense, com um governo amigo, seria mais fácil a destruição da OLP – que estava montada no Líbano - e de todos os árabes que lutassem por um Estado palestino. Mas o principal seria desmobilizar a resistência palestina contra a ocupação israelense na Cisjordânia. E aqui, na Cisjordânia, fechamos o ciclo da importância da religião nesse jogo político e militar.
Fernando - O Iraque é uma outra história. Essa guerra entre xiitas e sunitas, a resistência contra a ocupação, a seqüência de atentados terroristas indiscriminados que está acontecendo hoje e mata cerca de cem pessoas todos os dias começa com a invasão criminosa dos Estados Unidos, planejada também há bastante tempo.
RF - Como você tem visto a intolerância religiosa tanto da parte muçulmana como da parte judaica no Oriente Médio?
Fernando - É curioso como a grande mídia focaliza a intolerância de um lado só, o lado mulçumano. De certo ponto, é compreensível pelos atos e declarações da organização terrorista Al-Qaeda e suas redes similares. A mídia adora a Al-Qaeda porque não existe nada mais “espetacular” do que as ações do grupo e, no final das contas, o que conta é o espetáculo. A intolerância é um dado concreto, mas pouco compreendido. Quando estive no Iraque em 2003, só vi homens com armas nas mãos, espumando de ódio contra o Ocidente, quando as câmeras das televisões estrangeiras eram ligadas. ões estrangeiras eram ligadas. Tudo se transformava num piscar de olhos, como um grande teatro. Depois, com os microfones e câmeras desligadas, as pessoas voltavam a sua rotina. O vendedor de verduras que, segundos antes, aparecia com o rosto desfigurado pelo ódio, segurando uma kalishnikov (fuzil), conversava tranqüilamente com o repórter norte-americano, o barbeiro voltava a cortar barbas e o porteiro do hotel voltava a ler a revista Vanity Fair. É claro que hoje a situação está muito diferente, está tudo muito mais grave, agora é caos generalizado, mas naquela época, com o país já ocupado, quase todos os iraquianos com quem conversei queriam saber do Brasil, do futebol, do carnaval. Poucos queriam falar de guerra e nenhum deles me hostilizou por eu ser ocidental. Um árabe, em meio aos carros militares, quis saber de onde eu era. Ao descobrir que eu era brasileiro, me pegou pelos braços e, com ar muito sério e grave, perguntou: “escuta, você não tem medo de morar no Brasil, lá não é muito violento?”.
RF - Você diz que a intolerância não é apenas mulçumana, poderia dar um exemplo?
Fernando - Todas as guerras são – de algum modo - fruto da intolerância e, em muitos casos, fruto do fundamentalismo. A Guerra ao Terror, levada a cabo pela administração Bush, é uma guerra baseada – além dos motivos econômicos já citados - na intolerância e no fundamentalismo. A intolerância gera a desumanização, que é o pressuposto da guerra e ela vem de cima para baixo, se espalhando. No conflito árabe-israelense, onde todo mundo focaliza a intolerância mulçumana, é fácil perceber, mesmo nos discursos oficiais israelenses, a presença da intolerância. Alguns exemplos: Itzhak Shamir dizia que os palestinos eram “gafanhotos”. O general Raphael Eitn os chamou de “baratas”. O Ministro da Defesa, Ben-Eliezer, os definiu como “piolhos”. Para o ex-primeiro-ministro Menahem Begin, os palestinos eram “bestas caminhando sobre dois pés”. A primeira-ministra Golda Meir preferia chamá-los de “animais de duas patas”. Isso não demonstra intolerância? Em 1969, Meir, em entrevista concedida ao jornal londrino The Sunday Times, questionada sobre os palestinos, respondeu: “eles não existem”. E nessa frase, que tem sua raiz no slogan do sionismo, ela resumiu todo o cancelamento da humanidade do outro, justificando, assim, a barbárie cometida e consentida. Sem remorsos.
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